O mundo das fadas
As fadas encontraram seu espaço na literatura de entretenimento nos séculos XII-XIII. Com o despontar da literatura narrativa de Corte na segunda metade do século XII, - produção literária esta em língua vulgar e constituída em torno dos principados regionais que melhor souberam se adequar à expansão comercial e ao desenvolvimento urbano do período, como é o caso dos condados de Champagne e Flandres -, o tema da fada que se deixa surpreender pelo cavaleiro por quem se apaixona, cumulando-o de benefícios e riquezas, torna-se uma constante nos lais e romances de cavalaria franceses do final do século XII em diante, surgindo com ele todo um conjunto de referenciais relacionados ao mundo das fadas: animais maravilhosos que conduzem o cavaleiro ao outro mundo feérico, rivais ou inimigos declarados que ele encontra por lá etc. Contudo, as fadas e as criaturas feéricas em geral também acharam acolhida na literatura escrita em latim produzida no âmbito da Corte de Henrique II Plantagenet. Com a ascensão deste monarca ao trono da Inglaterra, jovens instruídos nas universidades francesas e italianas foram contratados para a função de "curiales", funcionários especializados na administração jurídica e fiscal do reino. Duas autênticas coletâneas de maravilhas surgirão deste ambiente de letrados prestigiados que fazem parte da comitiva real: o De Nugis Curialium, de Walter Map, obra escrita entre 1181 e 1194, e os Otia imperialia, de Gervais de Tilbury, esta última redigida em 1210, depois que Gervais tinha abandonado o séquito de Henrique II, e dedicada ao imperador Othon IV de Brunwick. Apesar das inevitáveis diferenças de estilo e propósitos entre a literatura escrita em latim e a literatura vernácula no período citado, os temas e motivos que se ligam ao mundo feérico apresentam evidentes semelhanças em ambos os gêneros literários, permitindo constatar que eles partem de um núcleo comum.
No estágio atual das pesquisas, não pairam dúvidas sobre o fundo comum de onde surgiram as concepções e modelos relativos às fadas e ao mundo feérico em geral presentes na literatura medieval dos séculos XII-XIII: os mitos e lendas célticos conservados nas tradições folclóricas do norte da Europa, notadamente em Gales, na Irlanda e na Bretanha francesa. Levando-se em conta o valor intrínseco do estudo das imagens e modelos literários para a compreensão da sociedade medieval, dois enfoques diferentes a respeito das fadas e das criaturas feéricas consolidaram-se nos trabalhos históricos das últimas décadas. Um deles, inspirado nos estudos de E. Köhler sobre as tensões entre o ideal cavaleiresco e a realidade social e econômica do século XII, analisa a existência e a ação das fadas e dos entes feéricos na literatura do período como um contraponto - de valor compensatório - às pressões que se abatem sobre a cavalaria da segunda metade do século XII em diante. O outro enfoque, mais antigo, inspira-se nos estudos folclóricos em geral e nos trabalhos de R. S. Loomis, dando ênfase aos substratos célticos revelados a partir do ciclo arturiano, os quais se procura identificar com precisão.
Não obstante os resultados obtidos por estas linhas de pesquisa, é inegável que, em termos metodológicos, ambos os enfoques operam um duplo desconhecimento de seu objeto de estudo. No primeiro caso, ignora-se os substratos arcaicos e as estruturas míticas inseridas nas narrativas feéricas de forma a valorizar os determinantes de ordem social e econômica da época em que tais textos foram produzidos. No segundo caso, relega-se a uma posição ínfima ou secundária a conjuntura social e cultural que deu origem a estes textos em prol de modelos míticos que tendem a ser considerados inalterados. Tanto em um caso como no outro, as conclusões obtidas inclinam-se para uma visão parcial, senão tendenciosa, do problema. E a tendenciosidade revela-se em todos os seus matizes quando se atribui a modelos míticos arcaicos um significado anacrônico que se pretende universal ou transcultural.
Para fugir a este dilema epistemológico, a melhor solução parece ser a análise dos complexos míticos relativos às fadas presentes na literatura medieval em termos de padrões de significados estruturados que revertem ao mundo céltico e, uma vez decodificadas as linhas gerais destes padrões de significados, o exame das transformações verificadas nestes substratos míticos no contato com a cultura clerical do século XII. Deste modo, evita-se uma atribuição errônea de significados às estruturas míticas inseridas nas formas literárias do período, ao mesmo tempo em que se possibilita a avaliação clara da inflexão dada a estas estruturas míticas pela cultura clerical.
Nesse sentido, este estudo colocará em primeiro plano a literatura escrita em latim produzida pelos "curiales" da corte de Henrique II, não apenas porque estes textos são menos conhecidos do que os "lais" e romances de cavalaria franceses, mas principalmente porque o De Nugis Curialium e os Otia Imperialia não deixam de revelar uma certa inclinação etnográfica (dentro das condições da época, bem entendido). As duas obras não perdem a oportunidade de registrar histórias e acontecimentos maravilhosos que são encarados como um contraponto à realidade cotidiana do mundo cortesão. No De Nugis Curialium, de Map, os galeses são um modelo negativo do mundo dos "curiales" por sua selvageria e seus costumes estranhos. Já os Otia Imperialia, de Gervais de Tilbury, são uma autêntica coletânea de maravilhas das diversas regiões pelas quais ele passou, o que lhe valeu inclusive, comparações com os catálogos compilados pelos folcloristas. Não se deve esquecer, contudo, que os dois autores são eruditos forjados no ambiente universitário do século XII.
Como eram representadas as fadas nas histórias do De Nugis Curialium, a mais antiga das duas obras citadas? Examinemos a história de Gwestin Gwestiniog conforme Map a relatou:
Gwestin Gwestiniog habitava nas cercanias do lago Brycheiniog, que tinha duas milhas de diâmetro. Durante três noites de lua cheia ele vê um grupo de mulheres dançar em seu campo de aveia e em seguida precipitar-se dentro do lago. Ao seguir estas mulheres, Gwestin as ouve murmurar como ele poderia capturar ao menos uma delas, e assim, procedendo de acordo com o que ouvira, ele apodera-se de uma delas e a desposa. As primeiras palavras que a mulher lhe dirige foram que ela voluntariamente o serviria e lhe obedeceria até o dia em que, querendo seguir os gritos vindos do outro lado do Llyfni, um rio das proximidades do lago, ele a golpeasse com o arreio. É o que se passa; após terem tido vários filhos, ele a golpeia com seu arreio e, ao retornar, a surpreende fugindo com as crianças. Ele as persegue e com dificuldade consegue arrancar-lhe uma das crianças, Triunein Vagelauc.
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